Nada em troca


O alarme irritante do cachorro avisava que alguém tentava interromper o nosso momento. Quando fui ao seu encontro ele já estava de saída. Não fiz questão de que revertesse seu curso, mas me olhou com um olhar melado, que de tão escorregadio quase me convenceu a dar-lhe um pouco mais da minha atenção. Era uma mistura de compaixão, vergonha e surpresa. Não me permiti outra ação que não fosse a de recuar. Só que, antes de recolher-me percebi que o motivo da repentina visita estava bem ali em cima da mesa. Fingi que não havia visto e de costas senti que aquele cambaleante ser queria mais que uma tímida troca de olhares. Me faltou chão, lugar, palavras. A aproximação não se prolongou, porém me fez chorar em silêncio. Num estalo entendi que o amo, não importa o quanto se afaste, nada mudará o rumo natural das coisas. Foi dele que vim, não há como fugir da minha realidade. É um sentimento sem nexo, mas que insiste em me acompanhar. Justo no momento em que eu estava ali a dançar na Santa presença, embalada ao doce som de uma rouca voz de um Black Power louco. Num instante sem ligação nenhuma com o mundo real, ele me aparece com um sorriso flácido, olhar distante e triste, voz rastejante, regado de uma bebida de cheiro nada agradável e me desmonta; cheiro esse que passa longe do agradável aroma do Seu vinho novo. Não é justo, ele também precisa Te experimentar! A verdade é que o amo, apesar dos pesares. Talvez, seja esse o sentimento que Senhor espera de mim, amor sem condição. E ele não precisa se esforçar para ter de mim o que nunca soube me dar...

Ilusão Consciente


Com os resquícios que os outros deixam escapar percebo que ela já não é tão significante como antes. Quem sabe antes também já não fosse tão assim. Só Deus sabe o que se passava do outro lado. Outro lado, outra tela, outra concepção. Mas, era justamente esse mistério que a seduzia, de outra forma não teria sentido. O descobrir-te era pra ela um convite diário à estranha superfície de seu discurso. Embora previsível, era delicioso ouví-lo. Boba que era. Não a culpo por isso, não que fosse inocente, mas havia a velha questão da carência, aquela que devia não mais existir, só que não abria mão de sua companhia. E se deixou levar pela duvidosa, porém cativante, manifestação de carinho. Achava que nunca fosse acontecer, mas esfriou. Discretamente foi se afastando e aos poucos sua imagem deixou de ser constante. Aquela relação foi, então, enfiada num armário de paredes esbranquiçadas pelo denso frio de um suposto clima polar. Boba que é, ainda guarda em uma de suas gavetas a esperança de uma reaproximação que derreta a espessa camada de rancor que se formou ao longo dessa evidente farsa sedutora.
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